A moda é uma das indústrias que reage com mais agilidade a movimentos culturais e anseios coletivos. No âmbito nacional, uma leva de criativos politizados e cheios de ideais tem mostrado, por meio de ações e não de discursos, a potência da indústria como protagonista de mudanças. Esperançosa, dinâmica, plural, audaciosa e conectada à realidade brasileira, essa nova geração é composta por marcas e estilistas que prezam em mesma medida por vendas e por seus valores. A última edição do São Paulo Fashion Week, que aconteceu em junho, foi emblemática. Se, por um lado, teve quem sentiu falta de nomes consagrados no line-up do evento, jovens estilistas brilharam na passarela ao mostrar o Brasil que sonham construir: um país que valoriza a indústria nacional, dialoga sobre política, é autenticamente diverso, homenageia nossa cultura e identidade e quer gerar um impacto positivo.
Um desses estilistas é Airon Martin, fundador da Misci e defensor ferrenho da produção nacional. Muito do seu trabalho é feito nos bastidores, garimpando fábricas que produzem matérias-primas de alta qualidade, mas que, por falta de incentivo, não estão mais ativas. “A nossa indústria têxtil precisa ter a autoestima renovada. Muita coisa deixou de ser feita no país, muitas máquinas estão paradas. Graças à Misci já colocamos maquinário para rodar novamente. Elas produzem o fio, nós desfilamos a peça, e depois a tecelagem coloca isso no mostruário e sente a repercussão de seus clientes”, diz Airon.
Isaac Silva, outra expoente dessa geração, também vê o resgate desse sentimento entre os colegas. “Em outros momentos, a moda brasileira já foi desacreditada, mas hoje vejo que estamos em uma crescente. Tem muita gente criando com DNA nacional, com essência política, com vozes representativas de várias regiões do país.” Ela descreve as grifes que despontam no cenário como “pequenas grandes marcas”. Apesar de trabalharem em escala menor, são etiquetas que abraçaram o poder do nicho e conhecem bem o seu público. “Os meus clientes, as pessoas que fomentam a minha marca, têm valores muito alinhados com os meus, por isso não tenho medo de me posicionar”, diz Naya Violeta, que chamou Sonia Guajajara para fechar o seu desfile no São Paulo Fashion Week com uma bandeira com os dizeres “São Paulo é terra indígena”, em junho passado. “Tenho mais chance de perder dinheiro se não tomar partido do que o contrário. Esse é o lado bom de lidar com um público inteligente”, completa. Para ela, que integrou o Projeto Sankofa e é a primeira grife de Goiás a participar do SPFW, ter uma figura indígena na passarela é representativo, mas o trabalho não termina aí. “O empoderamento estético é gigante, mas a autonomia financeira também é fundamental. Quero que a indústria consiga absorver mais profissionais e com salários mais dignos”, diz Naya, que tem entre os seus princípios a remuneração justa.
Para os irmãos Céu e Júnior Rocha, dupla soteropolitana que comanda a Meninos Rei, a única maneira coerente de participar do SPFW é trazendo para perto marcas que também não fazem parte do eixo Rio-São Paulo, como Tsuru, Luana Rodrigues e Ilê de Odé, que assinaram os acessórios do último desfile da grife. “Não foi fácil chegar ao SPFW, viemos de espaços negados, portanto o lugar que estamos ocupando tem que ser um de possibilidades. Não podemos centralizar só em nós, quando sabemos que o coletivo também anseia por oportunidades”, dizem.
David Lee, diretor criativo da grife homônima que tem sede em Fortaleza, mas que vende em maior escala para a capital paulista, diz não imaginar tirar a sua produção do Ceará. “Quero gerar um impacto positivo na minha cidade, e isso inclui ter a empresa aqui, pagar impostos aqui”, diz. Sua influência vai além: ano passado, foi nomeado embaixador da Escola de Moda da Juventude, uma iniciativa da prefeitura cearense voltada à população periférica – parte de seu envolvimento inclui ministrar o módulo final do curso. David é um dos maiores patronos do crochê, assunto que também é pauta para Vinicius Santanna e Patrick Fortuna, duo por trás do Ateliê Mão de Mãe, que hoje emprega 45 crocheteiras. “Elas são a nossa principal fonte de motivação, podemos negociar e alterar tudo, menos o valor da mão de obra que elas cobram, algo que, por tanto tempo, não foi valorizado”, diz Vinicius.
Algo que todas essas marcas têm em comum, além de se inspirarem majoritariamente na cultura brasileira e não em referências importadas, é a autenticidade nas causas que são caras para cada uma delas. “Qualquer manifestação política que faço vem de uma verdade muito genuína dentro de mim”, diz Isaac Silva, que homenageou a drag queen Márcia Pantera em sua última coleção, uma celebração da resistência dessa cultura. Tom Martins, da Martins, é desse grupo. “Muitas marcas fazem castings com modelos negras, ou trans, por exemplo, mas não empregam nenhuma minoria”, fala. Para ele, tudo o que aparece na passarela é um reflexo de suas políticas internas, como a representatividade de corpos. “Não fazemos só para o desfile, as roupas realmente vestem todo mundo”, completa. “Escolhemos as nossas modelos e, quando vimos, tínhamos seis pessoas trans. Não foi planejado, é simplesmente um espelho da minha comunidade.”
Para todos eles, a moda é política, seja de maneira mais ou menos explícita. Mônica Sampaio, da Santa Resistência, enxerga isso com clareza: “Todos os segmentos estão reagindo ao momento socioeconômico de alguma forma, e, na nossa indústria, isso tem aparecido pelo protagonismo para quem já foi negado. Estamos descentralizando, mudando a bússola para regiões que não eram vistas antes”. Célio Dias, da Led, que desde a fundação de sua grife celebra a comunidade LGBTQIA+, entende essas implicações. “O corpo é um lugar de resistência. Vestir o que você quer e estar feliz, estar confortável, é um ato político.” Um de seus carros-chefes são as camisetas com mensagens como “bicha power” e “muda Brasil”.
Mesmo com pautas diversas e jeitos diferentes de defendê-las, é uma geração unida por seu entusiasmo pela indústria, e pela certeza que juntos a fortalecem. Não é raro ver estilistas prestigiando uns aos outros em desfiles, backstages, lançamentos ou trocando fornecedores. “É uma besteira focar em concorrência, até porque o caminho que a gente trilha hoje foi aberto por outros nomes, como Zuzu Angel e Ronaldo Fraga, que também usaram a moda para se posicionar”, diz Célio. Com uma leva de criadores conectados coma realidade e convictos de sua capacidade para serem agentes de transformação, o futuro tem tudo para ser brilhante.