“Nasci em 1991, no Rio de Janeiro, fruto de uma paixão avassaladora. Dizem que a relação dos meus pais era tão intensa que ele ‘sumiu’ por dois anos da fábrica da Blue Man, fundada por ele, quando se casaram. Eles viviam, contam, uma eterna lua de mel. Meu pai já havia se casado antes. Mas não tinha filhos e sonhava ter uma menina. Minha mãe falava que sua bebê se chamaria Sharon. Então, quando nasci, os dois estavam vivendo um sonho. Foi uma festa. Minha chegada, no entanto, fez a vida do casal desandar com a mesma intensidade.
Minha mãe não lidou bem em dividir seu homem com outra mulher, no caso eu, e caiu em uma depressão pós–parto fortíssima. Com a maternidade e os hormônios em ebulição, ela então, que era dependente química desde os 17 e estava limpa havia alguns anos, voltou ao vício. A partir daí os dois passaram a brigar muito e, quando fiz 1 ano, se separaram. Ficamos morando no mesmo prédio, em andares diferentes. Eu era cuidada por uma babá, e lembro de ficar na varandinha do apartamento olhando meu pai do outro lado, enquanto minha mãe, que passou a trocar o dia pela noite, dormia. Aconteceu de tudo ali, teve até traficante morando com a gente.
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A coisa era tão bizarra que, uma vez, minha mãe me levou para uma favela e, na tentativa de simular um sequestro, mandou a babá dizer ao meu pai que estávamos sumidas desde o dia anterior. Ele contava que a moça havia chegado a sua casa chorando, mas, pressionada, acabou revelando a mentira. Eu tinha 2 anos e fui encontrada deitadinha no chão quando a polícia arrombou o barraco. Minha mãe foi pega em flagrante com cocaína. E, depois de duas noites na delegacia comigo ao lado, perdeu minha guarda. Passei a morar definitivamente com o meu pai.
Cresci ouvindo que ela não era má, mas doente. E ele nunca me proibiu de vê-la. Em determinado momento, minha mãe até tentou se aproximar, restaurar nossa relação, mas sempre entre idas e vindas. Na verdade, tenho várias lacunas de memória desse tempo, momentos que não sei dizer se ela estava ou não presente. É como se uma parte da minha história tivesse ficado vazia.
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Meu pai sempre foi meu melhor amigo. Mas a figura materna me fez muita falta. Quando eu menstruei, aos 11 anos, fomos eu e ele a uma farmácia ao lado da escola e ficamos parados olhando a gôndola de absorventes sem saber qual pegar. Qual a diferença entre aqueles modelos todos? Minha mãe provavelmente saberia. Mas não estava lá. Lembro dela dizendo que ele ia se casar de novo e me largar. Me chamava de pobre menina rica. Foi assim que eu cresci.
Fui criada dentro da fábrica de biquínis. Quando chegava era o terror, todo mundo saía fechando os setores porque eu era acelerada, queria mexer em tudo. Bem moleca mesmo. Adorava estar cercada de gente. Meu comportamento não mudou nem mesma na adolescência. Na minha festa de 15 anos, no Copacabana Palace, tinham 600 pessoas, todas próximas. Só mãe que eu não tinha direito. Lembro muito dela me dizendo que eu era a melhor mãe que ela já tinha tido. Nesse aniversário, tive que quebrar meu porquinho para comprar seu vestido. Desde muito pequena, vivia uma inversão total de papéis.
Aos 16 anos, estava prestes a reprovar por faltas na escola e meu pai decidiu me tirar do colégio. Ele dizia que eu era bonita e rica, não precisava estudar. Queria que eu me dedicasse mais a fazer exercícios, cuidar melhor de mim. A verdade é que eu era gorda e, para um cara que vendia os menores biquínis do Rio de Janeiro, ter uma filha assim era a morte – esse foi nosso único ponto de conflito. Mas eu o ouvi e realmente comecei a malhar e me sentir melhor. Naquele ano, fui pela primeira vez ao cinema sozinha. Comecei a sair, me sentia independente. De certa forma, me tirar do colégio foi a melhor coisa que meu pai podia ter feito. Com mais tempo livre, passávamos horas e horas juntos e ficamos ainda mais próximos. O ano era 2018.
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Meses depois, estava em Nova York com sua namorada quando o telefone dela tocou. Havia passado o dia angustiada, com a sensação de que alguma coisa ruim ia acontecer. Ana então atendeu ao telefonema que mudaria a minha vida e deu a notícia. ‘Eu não queria dizer isso, mas seu pai teve um infarto’, disse. ‘E morreu.’
Senti os luminosos da Times Square girando ao meu redor. Depois disso, só lembro de chegar ao Rio e a Polícia Federal me tirar do avião antes de todo mundo. Minha mãe estava no aeroporto e algumas amigas me esperavam no carro que nos levaria direto para o velório. Como somos judeus, encontrei o caixão fechado. E, ali, entendi que nunca mais veria o meu pai.
Durante seis meses minha casa ficou exatamente igual àquele dia. O controle remoto no mesmo lugar onde ele havia deixado. Não mexi em nada. Superafastada da minha mãe, só sobrevivi à morte dele por causa da minha avó. Ninguém esperava que eu fosse forte, mas tinha de ser para ela. Um ano depois, no entanto, a única pessoa que me restava também se foi. E, completamente sozinha, me fechei para o mundo. Desenvolvi amigdalite emocional, me sentia engasgada, sem fala. Não tinha mais fôlego para perder nada.
Em nenhum momento pensei em assumir a marca do meu pai. Tinha perdido meu núcleo familiar inteiro, e não herdado uma empresa. Mas não tinha como falar ‘não’ aos funcionários da fábrica que diziam que eu era um pedacinho dele e pediam muito que eu fosse para lá. Resolvi tentar.
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O começo foi difícil. Enquanto minhas amigas tomavam trote na faculdade, eu tentava lidar com 500 funcionários, pessoas que estavam ali havia 30 anos. Eu era uma menina de 18, como podia dizer para alguém o que era certo, se uma estampa era boa ou não? No dia seguinte à minha chegada, o braço direito do meu pai sumiu. Nossa estilista também foi embora e me vi mais perdida que nunca.
Mas o tal do DNA existe e quando percebi já estava imersa na produção. Entendi que, por mais que eu não soubesse a teoria, havia nascido ali. Aquilo sempre esteve em mim – nas conversas na mesa do jantar, nas férias, o tempo inteiro. Mais do que isso, entendi que, para mim, a empresa não era (só) sobre fazer biquíni. A transformação de vida das pessoas, seja de um funcionário ou de um cliente que compra uma peça para a viagem da sua vida, era o que movia. Perceber isso foi libertador, fez toda diferença.
Com a morte do meu pai, emagreci quase 60 quilos. Não pelo sofrimento em si, mas porque ele me bastava. A seu lado, não precisava ser enxergada por homem nenhum. Sem ele, precisava olhar para mim. Pode parecer estranho, mas acho que a maior prova de amor que ele me deu foi sua ausência. Antes, não sabia quem eu era, quem pretendia ser. Não ia ter saído debaixo da asa dele nunca. Nunca.
Em 2015, aos 23, me casei com o Michel, de quem era muito amiga desde a adolescência. Mas, em algum lugar, pensava que construir uma família era permitir ter de novo algo a perder. E durante muito tempo tive pânico de ser mãe. Achava que isso acabaria com o meu casamento ou me desconectaria de mim mesma.
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Três anos depois, no entanto, engravidei. Atrapalhada com tantas novas sensações, botei na cabeça que teria um menino. Tinha medo da minha própria história, medo de mulheres na minha vida, de que acontecesse comigo o mesmo que aconteceu à minha mãe. Não podia nunca ter uma menina.
Meu primeiro filho, Aaron, nasceu em junho de 2018. Apesar de estar feliz, sua chegada não foi tão simples. No primeiro dia, na maternidade, deixei o bebê cair do meu colo e tive certeza de que não havia nascido para ser mãe. ‘Que tipo de ser humano sou eu?’, pensava. ‘Será que vou ser uma mãe pior do que a minha foi?’
Quando o Aaron estava com 40 dias, engravidei novamente – dessa vez sem planejar. Entrei em desespero, chorava horas seguidas. Mas ainda não sabia o pior: estava à espera de uma menina. Demorei tanto para aceitar que minha filha ficou sem nome até os oito meses de gestação. Mas, com bastante acompanhamento psicológico, finalmente aceitei que teria outra mulher na minha vida – e que, sim, poderia ser bom.
Ayla nasceu em maio de 2019. Ainda dentro da barriga, minha pequena me ensinou que minha história não é a dela. Ninguém precisa carregar um peso que não é seu. Minha filha veio para restaurar tudo em mim. Com o seu nascimento, nasceu também outra Sharon. Uma muito mais forte, completa.
Em algum momento, a maternidade foi ruim para minha história com a minha mãe. Principalmente depois de ter uma menina. Porque via o quanto a Ayla precisava de mim, quanto me olhava com admiração. Entendi que, pelo menos nessa fase, sou seu espelho, sua maior referência. E senti muita raiva da minha mãe. Raiva por ter descoberto a dimensão do amor que um filho é capaz de despertar. Raiva por realizar o quanto precisava daquilo que não tive, por entender que não fui suficiente para trazê-la de volta.
Hoje aprendi que perdoar minha mãe me torna uma pessoa melhor, principalmente para os meus filhos. Que esse perdão, na verdade, é para mim. Passei a olhar nossa história por outra perspectiva. Se ela tivesse lutado pela minha guarda, poderia ter sumido comigo no mundo. Quem seria eu se ela, de alguma forma, não me tivesse permitido ter o pai que tive? Agora sei que o que vivemos juntas foi o melhor que poderia ter sido. Decidi honrar minha trajetória e não ter vergonha dela. Quero viver de forma mais leve.
Gosto de quem me tornei. Após a morte do meu pai, consegui construir minha própria história. Este ano, a empresa que herdei completa 50 anos. Reformamos a fábrica e temos um faturamento maior do que o da época do meu pai, mesmo com menos lojas, e potencial para crescer muito mais. Além disso, em 2023, vou lançar uma marca própria, que comecei do zero. Costumo dizer que até aqui vivi em nome do pai, mas agora sigo em nome dos filhos. Não virei a pobre menina rica, como minha mãe havia previsto. Construí minha família, minha carreira, minha pátria. E entendi que posso e mereço ser feliz.”