Neste domingo, a Lei Maria da Penha completa 16 anos. Com alguns avanços a comemorar e tantos outros a conquistar, chegamos em 2022 com números que alertam. Segundo dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada sete horas, uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil. O crime, que é caracterizado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher e acontece em ambiente doméstico ou familiar, foi registrado 2.451 vezes no país, no período de março de 2020 a dezembro de 2021, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, 82% dos casos de feminicído são cometidos pelo companheiro ou ex-companheiro da vítima.
“Quando uma mulher vai procurar um equipamento de atendimento para situações de violência, como uma Delegacia da Mulher, já é o fim da linha. A violência doméstica é um problema estrutural, que precisa ser tratado através da educação da sociedade”, diz Conceição de Maria, co-fundadora e superintendente geral do Instituto Maria da Penha. Em entrevista à Vogue Brasil, Conceição ainda falou sobre os cinco tipos de violência que uma mulher está sujeita, sobre a chamada “trajetória da denúncia” e sinalizou quais são os canais seguros para defesa da mulher. Leia a seguir.
Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência durante a pandemia no Brasil. O que este dado diz sobre a nossa sociedade?
Esse é um dado extremamente significativo. Durante o isolamento social muitas mulheres se viram obrigadas a ficar em casa na companhia dos seus agressores. A violência dosméstica e familiar é um problema estrutural da sociedade que precisa passar por um processo educativo. O Instituto Maria da Penha nasceu em 2009, fundado pela própria Maria da Penha, e nós já surgimos com o objetivo de trabalhar projetos pedagógicos e educacionais de enfrentamento à violência contra a mulher. Entendíamos, desde o início, que nossa cultura machista, patriarcal e violenta precisa passar por um processo de reeducação para vislumbrarmos um futuro melhor.
Tem algum outro dado relevante que você gostaria de pontuar?
Em 2017, fizemos uma pesquisa em parceria com a Universidade Federal do Ceará sobre o impacto da violência doméstica no mercado de trabalho. Chegamos ao resultado de que as mulheres violentadas faltam, em média, 18 dias ao trabalho por ano. Além disso, elas ganham aproximadamente 10% a menos do que as mulheres que não sofrem violência, têm a produtividade comprovadamente reduzida e muitas vezes abandonam a vida laborativa.
São inúmeros tipos de violência que uma mulher está sujeita. Qual a importância de saber identificar cada uma delas?
A lei tipifica cinco formas de violência doméstica (física, sexual, moral, psicológica e patrimonial), mas está enraizado no subconsciente da sociedade que a mulher precisa suportar todos os abusos até chegar ao físico para poder denunciar. É importante falar que a violência quase nunca começa pelo tapa, mas pelos outros formatos, como o psicológico. Um grito, uma intimidação, perseguição, controle das redes sociais, dar um tapa na mesa, atirar um objeto contra a parede, não deixar a mulher estudar, trabalhar fora, controlar a roupa, ciúme doentio… Entre tudo isso, o primeiro passo é sempre afastar a mulher dos seus amigos e familiares, isolar a vítima. Então, é preciso que nossas mulheres estejam atentas, porque a instância final do ciclo da violência pode ser o feminicídio. Ele é uma morte anunciada, não é cometido do dia para a noite, começa lá naquela violência psicológica.
Você acredita que muitas mulheres ainda não denunciam seus agressores por medo?
É um misto de sentimentos. Muitas ficam esperando a mudança, outras têm medo de retaliação, vergonha de dizer que apanha do marido ou de falar que o casamento fracassou. Além disso, tem a questão da insegurança e dependência financeira, que é um dos fatores que faz com que mulheres suportem por mais tempo a situação de violência. Tem estatísticas que dizem que a média de anos até a mulher tomar a decisão de denunciar são oito, mas eu já conheci vítimas que ficaram 17, 15, 12 anos no relacionamento. É claro que tem os casos que ficam apenas dois ou três anos e logo rompem o ciclo, mas são raros. Mudar de vida dá medo. Não saber como vai ser o dia seguinte, se você vai precisar sair do emprego, se seus filhos vão ter que mudar de escola e você de endereço, assusta. A busca pela justiça, que chamamos de rota da denúncia, é um trajeto difícil, mas a mulher tem que dar o primeiro passo, porque ficar no relacionamento é morrer aos poucos.
Quais são os canais seguros para realizar uma denúncia? Como as vítimas podem se proteger?
A Lei Maria da Penha estipula que os municípios devem adotar os equipamentos que atendem à lei, como a Delegacia da Mulher, o Centro de Referência da Mulher, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e a Casa-Abrigo. O problema é que esses equipamentos só existem nas grandes cidades e os pequenos municípios ficam desassistidos. Essa é, inclusive, uma das principais bandeiras do Instituto. Precisamos sensibilizar o poder público para criar equipamentos de defesa da mulher em toda e qualquer cidade, por menor que seja. Além disso, existe também o número 180, que é o Disque Denúncia mantido pelo governo federal que atende 24 horas por dia, e os aplicativos Direitos Humanos Brasil e PenhaS. Caso na sua cidade não tenha nada disso, é possível pedir ajuda em postos de saúde e até em escolas públicas, para a professora do filho, não importa. Romper o silêncio é o primeiro passo.
Qual a importância de se ter uma rede de apoio para mulheres que sobrevivem à violência doméstica?
Extremamente importante, não só no momento da denúncia, mas antes disso também, porque são raros os casos em que a mulher consegue tomar essa decisão sozinha. Ela está muito fragilizada, com medo, intimidada, pisando em ovos na própria casa. E a rede de apoio às vezes é a própria família, uma irmã, prima, cunhada ou mãe, qualquer pessoa com quem ela consiga se abrir. Alguém que tenha escuta ativa, que dê crédito ao relato dessa mulher e que pergunte: “o que eu posso fazer para te ajudar?”. É importante que a gente respeite o trajeto dela até a denúncia porque, muitas vezes, nesse primeiro momento, ela só quer desabafar.
Qual a importância de se falar abertamente sobre esse assunto ainda hoje?
Os números que vimos na pandemia só comprovam a importância de ainda debatermos sobre a violência doméstica. Não estamos falando de uma questão esporádica. Se nós estendermos nossos braços, com certeza vamos tocar em alguém que está passando por isso ou que conhece alguém nessa situação. A informação é extremamente importante, não podemos parar de falar.
Nesses 16 anos da Lei Maria da Penha, quais avanços podemos comemorar e o que ainda falta conquistar?
A Lei Maria da Penha foi um divisor de águas. Hoje, a mulher tem onde recorrer quando sofre violência doméstica, isso não existia antes. Dentro do Instituto, temos depoimentos fortíssimos de pessoas que dizem: “Eu fui salva pela lei”. Para além dos relatos intimistas, as estatísticas também comprovam os avanços. Muito foi feito, nossa lei é considerada uma das três mais avançadas no enfrentamento à violência doméstica contra a mulher do mundo, mas muito ainda falta. Por exemplo, a aplicação correta da lei. É necessário que existam equipamentos em todos os municípios, que tenha capacitação continuada para quem aplica a lei, para o pessoal da saúde, da segurança pública. É preciso que no currículo escolar conste uma disciplina que trate dos conflitos intrafamiliares, dos direitos humanos e das mulheres… E tudo isso está previsto na lei, mas não é implementado. Esse é o nosso desafio para os próximos 16 anos. Afinal, como diz aquela frase, “o preço da conquista é a eterna vigilância”.
Caso seja vítima ou presencie uma situação de violência contra a mulher:
Disque 180: Central do governo federal que acolhe denúncias
Disque 190: Central de emergências da Polícia Militar
WhatsApp: (061)99656-5008
Telegram: direitoshumanosbrasilbot
Site: atendelibras.mdh.gov.br/acesso
App: Direiros Humanos Brasil para iOS e Android (Canais de atendimento do Ministério de Direitos Humanos)
Hospitais e UBS também devem prestar acolhimento às vítimas de violência doméstica ou familiar, assim como delegacias. Em alguns casos, as vítimas e seus filhos podem ser encaminhados para a Casa da Mulher Brasileira ou para abrigos para que se mantenham seguros.