A economista Sofia Manzano (PCB), 51 anos, é militante do Partido Comunista Brasileiro desde os 17 anos, quando se engajou na eleição presidencial de 1989. Nascida em São Paulo, viveu a infância em um sítio com a família na zona rural da região metropolitana até voltar à capital para fazer faculdade de Economia na PUC-SP. Em 2014 estreou na política institucional: foi candidata à vice-presidência do Brasil, com Mauro Iasi na cabeça de chapa, e conseguiu 47.841 votos no primeiro turno, ou 0,05% dos votos válidos.
Mestra em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp (Universidade de Campinas) e doutora em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), defende o socialismo como etapa de transição para o comunismo, modelo político que acredita ser capaz de superar as mazelas sociais da sociedade capitalista. Mora em Vitória da Conquista, na Bahia, onde é professora do curso de Economia da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) e desenvolve pesquisas sobre mercado de trabalho e desigualdade social no capitalismo.
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A seguir, o que propõe a candidata.
MARIE CLAIRE O que a senhora tem a dizer àqueles que dizem que o comunismo já se mostrou um fracasso no mundo? Existe algum modelo socialista no qual a senhora se espelha?
SOFIA MANZANO O comunismo nunca existiu, o que existiram foram experiências socialistas. Algumas não deram certo, como na União Soviética e Leste Europeu, tanto que esses países voltaram a ser capitalistas. Mas outras experiências socialistas estão dando muito certo, como Cuba. Se comparamos as condições de vida com as de outras ilhas caribenhas, ou de países do mesmo tamanho de Cuba, veremos como o socialismo tem dado muito certo naquela ilha, que sofre inclusive com os embargos criminosos dos EUA.
Mas não há um modelo de socialismo a ser seguido, porque cada país tem uma história, população, cultura e estrutura produtiva diferentes. O socialismo que pretendemos construir no Brasil é o socialismo brasileiro, com as características brasileiras e necessidades da classe trabalhadora brasileira.
MC A senhora enxerga possibilidade de uma revolução socialista acontecer no Brasil neste momento?
SM Não, de forma alguma. Uma revolução socialista depende de uma forte organização da classe trabalhadora, que hoje não temos. Uma das propostas da nossa campanha é retomar a organização da classe trabalhadora, para que ela seja a protagonista das pautas políticas do país e não dependente de governos ou eventuais vitórias eleitorais. A construção do socialismo passa pelo que chamamos de poder popular, que é o poder da classe trabalhadora tomar em suas mãos a condução das políticas como um todo.
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MC A cada dois dias uma mulher morre em decorrência de aborto ilegal no Brasil. Defende a lei do aborto como ela é hoje, que permite o procedimento apenas em casos de gravidez decorrente de estupro, anencefalia do bebê ou risco de vida para a mãe?
SM Não. Defendo a legalização do aborto e feito pelo SUS. Esse é um assunto que diz respeito à autonomia reprodutiva das mulheres e é uma questão de saúde pública. Os abortos são efetuados e as mulheres ricas o fazem em hospitais de alta qualidade, com assistência física e psicológica, enquanto a maioria das trabalhadoras, negras e periféricas são submetidas às piores condições. Inclusive são criminalizadas por uma prática que não é da vontade individual, mas da falta de uma educação sexual, de planejamento familiar e do próprio corpo, que poderia evitar a gravidez na infância e adolescência.
MC Em 2021, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada sete horas e uma menina ou mulher vítima de estupro a cada dez minutos, considerando apenas o que chega até as autoridades. Quais são suas propostas para combater a violência contra a mulher?
SM Além da implementação de diversos aspectos da Lei Maria da Penha, que não vêm sendo efetivados pelo Estado, como a questão de combater o machismo da sociedade patriarcal, temos que mudar o sistema de criminalização da vítima com relação à exposição da mulher, como se ela fosse um objeto.
Ao mesmo tempo, devemos combater a violência de uma forma geral na nossa sociedade, que faz com que ela se reproduza também no ambiente familiar, e fazer políticas de acolhimento para estas mulheres que são vítimas de qualquer forma de violência, mas que sejam efetivas e não paliativas.
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MC As famílias chefiadas por mulheres são especialmente atingidas pela fome: 63% dos lares com responsáveis mulheres apresentaram algum patamar de insegurança alimentar. Quais políticas públicas devem ser implementadas para as mães solo, que já são mais de 11 milhões no Brasil?
SM A principal proposta é uma reforma agrária radical que mude o modelo de produção de alimentos no país e ocupe mais pessoas no campo. Isso resolveria também o problema do desemprego, amenizaria os danos ambientais e permitiria a produção de alimentos.
Em segundo lugar, uma taxação da exportação das commodities alimentares, de tal forma que a produção alimentar seja destinada ao mercado interno. A recuperação da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e das compras governamentais de alimentos fundamentalmente da reforma agrária para o fornecimento de alimentos nas estruturas públicas como escolas, creches e hospitais.
Quanto às mulheres, defendemos que as políticas assistenciais de renda sejam amigáveis com a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Um dos critérios para a população receber Auxílio Brasil é não ter carteira assinada. Isso prejudica o avanço das mulheres na formalização do mercado de trabalho.
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MC Defende a manutenção da política de austeridade fiscal e do teto de gastos?
SM De forma alguma. Essa ideologia de austeridade fiscal tem provado na prática ser a grande responsável pela permanente crise econômica que o país vem sofrendo há 20 anos. A lei do teto de gastos será revogada inevitavelmente porque nenhum governo poderá levar adiante qualquer projeto de recuperação econômica do país com essa medida. A lei de responsabilidade fiscal também, que impede a expansão do serviço público com a efetivação de concursos públicos. Defendemos que os serviços sejam feitos por servidores públicos concursados, com plano de carreira, inclusive como forma de expansão do emprego.
MC A reforma trabalhista foi aprovada em 2017. Desde então, o desemprego aumentou, assim como a informalidade do mercado de trabalho. Como pretende melhorar o cenário do trabalho no Brasil?
SM Queremos revogar a reforma trabalhista. A nossa principal proposta com relação ao mercado de trabalho é a redução da jornada para 30 horas semanais, sem redução salarial, e o aumento do salário mínimo para que seja compatível com o dispositivo da Constituição que diz que deve ser suficiente para uma família ter alimentação, casa, educação, transporte e lazer. Portanto, o aumento até atingir o cálculo feito pelo Dieese.
MC Qual a sua posição sobre demarcação de terras indígenas? É favorável ao marco temporal?
SM Não. A nossa posição é de que a demarcação seja feita de forma imediata em todas as terras ocupadas por populações originárias, independentemente de estarem ali antes da Constituição de 1988, até porque elas estavam antes de 1500.
MC Segundo dados do Inpe, o desmatamento da Amazônia aumenta a cada ano. O que pode ser feito para preservar a floresta?
SM Reverter o desmatamento da Amazônia e outros biomas passa por reverter o modelo agrário e de mineração. Na questão agrária, é uma proposta de reforma que retire do agronegócio o protagonismo da ocupação da terra. Com relação à mineração, defendemos uma estatização do solo e um planejamento estratégico dos recursos minerais e energéticos por parte do Estado, e não da iniciativa privada.
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MC Michel Temer implementou na Petrobras o chamado Preços por Paridade Internacional, que faz com que o preço do petróleo suba a depender do contexto internacional, como tem acontecido hoje no Brasil. A senhora defende essa política?
SM De forma alguma. Ela tem levado ao desmonte completo da Petrobras, priorizando o lucro dos acionistas, e é uma das grandes responsáveis pelo processo inflacionário que vivemos hoje. Defendemos o fim da paridade do preço internacional e a reestatização completa da Petrobras. A política implementada desde o governo Temer é de desmonte da empresa e priorizar o lucro dos acionistas.
MC Estima-se que 6,1 mil pessoas morreram como resultado de violência policial em 2021. A senhora defende alguma mudança no sistema de segurança pública?
SM Defendemos uma mudança radical: a desmilitarização da polícia, uma polícia civil e investigativa. E uma mudança no próprio conceito do crime: se por um lado temos o crime organizado, por outro se confundem ações que passaram a ser tipificadas como crime mas que podem ser resolvidas com política pública, como criminalização do usuário de entorpecentes, que deve ser revertida.
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MC A população carcerária no Brasil bateu recorde e chegou a 919 mil presos, ficando em terceiro lugar no ranking internacional. Qual a sua opinião sobre a política de encarceramento em massa e a chamada guerra às drogas?
SM Totalmente contrária à política que vem sendo efetuada, que tem por trás grandes negócios lucrativos. A questão das drogas deve ser tratada como uma questão de saúde pública. Por outro lado, a questão do tráfico de drogas, de armas, mulheres e crianças deve ser enfrentada com um setor de inteligência. Há também a questão de cidadãos encarcerados sem terem sido julgados ou com erros judiciais.
Defendemos uma ampla revisão de todo o processo com o incentivo a equipar os setores do Judiciário para fazerem isso e reduzir o encarceramento. Levar ao encarceramento apenas a chefia do crime organizado. Somos favoráveis à legalização da maconha e do tratamento dos outros entorpecentes como questão de saúde pública.
MC Houve algum episódio de machismo que marcou a sua trajetória?
SM Nunca fui vítima de uma violência que tenha me paralisado ou me causado dano mais lesivo. Mas é evidente que sofro processo discriminatório “normal”, temos dupla jornada de trabalho, exercemos funções muito mais de bastidores do que protagonismo. Temos que nos colocar para ocupar os espaços da política com coragem e determinação, impedir que a violência de gênero nos afaste. Impulsionar de forma veemente a população LGBTQIAP+ e mulheres negras a se colocarem nas disputas políticas. Mas todas essas medidas têm que ser vinculadas principalmente à pauta da classe trabalhadora. não adianta termos mulheres na política, mas que reproduzem a estrutura de classes dominantes e patriarcais.