Tratamento combina fármacos, intervenções cirúrgicas e alterações no modo de vida
Até há algumas décadas atrás, as mulheres passavam a maior parte de seus anos reprodutivos grávidas ou amamentando. Em média, experimentavam cerca de 40 menstruações durante toda a vida. No entanto, essa realidade mudou drasticamente: estima-se que agora elas tenham aproximadamente 400 episódios de sangramento ao longo de sua existência. Um dos efeitos dessa mudança de comportamento é o aumento da ocorrência de endometriose.
A endometriose é uma doença ginecológica crônica benigna que ocorre quando o tecido que reveste a cavidade uterina, chamado endométrio, implanta-se fora do útero. Estima-se que essa condição esteja presente em 10 a 15% das mulheres em idade reprodutiva.
Existem três formas de endometriose: peritoneal (quando o endométrio se implanta no tecido que reveste a camada superficial do abdômen), ovariana (formação de cistos no ovário) e profunda (invasão de órgãos como intestino, bexiga, ligamentos ou mesmo órgãos distantes, como os pulmões).
“Essas três condições são consideradas doenças distintas que frequentemente se associam”, afirma o ginecologista Mauricio Simões Abrão, coordenador de ginecologia do Hospital Beneficência Portuguesa, professor associado da Faculdade de Medicina da USP, chefe do setor de endometriose do Hospital das Clínicas de São Paulo e ex-presidente da AAGL, sociedade internacional de cirurgia ginecológica.
A pesquisa científica descobriu que o processo inflamatório dessa doença também está relacionado à presença de fibrose. “Assim como as glândulas e o estroma, que fazem parte da definição clássica da endometriose, a fibrose passou a ser considerada como parte da doença”, explica o médico, ex-presidente da AAGL, a principal sociedade de cirurgia ginecológica do mundo.
Causas e fatores de risco
A principal hipótese para a endometriose é a da menstruação retrógrada, que está relacionada a falhas no sistema imunológico. Durante o período menstrual, parte do sangue flui em sentido contrário pelas tubas uterinas e chega até a cavidade pélvica. As células endometriais acompanham esse líquido e se implantam onde não deveriam.
A maioria das mulheres tem mecanismos de absorção dessas células em locais impróprios. No entanto, nas mulheres com endometriose, esse processo falha.
“Também sabemos que há teorias genéticas associadas à doença. Acredita-se que existam vários tipos de endometriose, que podem se manifestar como diferentes doenças. Por esse motivo, cada forma de endometriose requer uma abordagem, perspectiva e prevalência específicas”, afirma Abrão.
Os fatores de risco para essa condição incluem:
– Menstruação precoce;
– Ciclo menstrual curto;
– Histórico familiar;
– Nunca ter engravidado;
– Estilo de vida. Acredita-se que o estresse e a alimentação favoreçam o surgimento da doença.
Sintomas da endometriose
A cólica menstrual é o sintoma mais conhecido da endometriose. No entanto, a dor pélvica também pode ocorrer fora do período menstrual. Mulheres relatam desconforto durante a relação sexual, dor durante a evacuação e a micção durante a menstruação.
“Recebemos pacientes de 25 anos que têm dor desde a primeira menstruação. Como nenhum médico deu importância para a queixa, elas se acostumaram ao desconforto e seguiram em frente”, conta a ginecologista e obstetra Carla Maruxo Youssef, do Hospital São Camilo Santana. “Felizmente, as mulheres têm mais voz hoje em dia. As pacientes com endometriose precisam ser acolhidas.”
Abrão enfatiza o perigo da negligência médica, quando o paciente é ignorado pelo profissional de saúde.
“A falta de escuta gera impactos emocionais significativos. Em 2005, publicamos um estudo que mostrava que o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico da doença é de 7 a 12 anos. Esses números são semelhantes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. O conceito de que a cólica desaparece após o casamento precisa ser combatido”, diz ele. A dificuldade de engravidar também é um sintoma da endometriose.
Diagnóstico e tratamento
O diagnóstico começa com uma avaliação clínica, combinada a um ultrassom – mas não qualquer ultrassom. O exame deve ser realizado após uma preparação intestinal, que inclui uma dieta específica para limpar o intestino, por um médico experiente.
“Nos últimos três congressos internacionais dos quais participei, o foco era ampliar o conceito de diagnóstico por imagem. O ultrassom possui alta sensibilidade, principalmente para certos tipos de endometriose. Um diagnóstico preciso permite que o médico decida quando e como indicar o tratamento clínico ou cirúrgico”, explica Abrão.
A ressonância magnética pélvica, também com um protocolo de preparo, é uma alternativa. “Esse exame possui sensibilidade um pouco menor que o ultrassom e tende a ser mais caro”, aponta o ginecologista da BP.
Como a endometriose está associada à menstruação, o tratamento clínico consiste, principalmente, em suprimir a ovulação e, consequentemente, o sangramento.
“Pode-se utilizar contraceptivos de uso contínuo, pílulas anticoncepcionais com hormônios específicos para ajudar a tratar a endometriose e progestágenos”, informa Youssef.
No entanto, a cirurgia ainda é o principal tratamento, pois permite a remoção dos focos de endometriose. “Recomenda-se que a cirurgia seja realizada por especialistas, devido à complexidade da doença. Nem sempre é necessário realizar o procedimento, pois ele envolve riscos e custos adicionais”, diz Abrão.
Mas quando é necessário recorrer à cirurgia?
Existem vários critérios, como a persistência dos sintomas, o comprometimento de órgãos específicos e o tamanho dos cistos ovarianos. Duas falhas em procedimentos de fertilização assistida também podem indicar a necessidade de cirurgia, de acordo com o ginecologista da BP.
A remoção do útero é uma opção controversa, uma vez que a endometriose ocorre fora desse órgão. A cirurgia pode ser recomendada em casos de associação com adenomiose.
O tratamento também envolve mudanças no estilo de vida. “Uma dieta anti-inflamatória, com redução do consumo de laticínios e açúcar, tem um efeito positivo na redução da dor”, aponta Youssef.
A prática de exercícios físicos também é benéfica. Durante a atividade física aeróbica, por exemplo, o organismo da mulher produz endorfina, o que reduz os níveis de estrogênio e modula a imunidade. Terapias de apoio incluem suporte psicológico, acupuntura e fisioterapia pélvica.
Para o futuro, Abrão prevê que o tratamento incluirá a prescrição de medicamentos que atuam no sistema imunológico: “Os remédios podem, por exemplo, combater certas interleucinas, que são componentes imunológicos inflamatórios, e bloquear a fibrose”.
Outra área de pesquisa envolve o microbioma. “Estudos têm mostrado que certas bactérias são mais prevalentes, principalmente na vagina, de mulheres com endometriose. Talvez no futuro seja possível perceber que algum outro fator externo contribui para o desenvolvimento da doença”, acredita o médico.
Impacto na qualidade de vida
O primeiro impacto é geralmente algum tipo de dor, relatada por 90% das pacientes. Outra consequência é a infertilidade. “Quando a doença afeta o ovário, forma-se uma espécie de cápsula que dificulta a produção de óvulos e a ovulação. Em outros casos, a inflamação pélvica obstrui as trompas de Falópio”, explica Youssef.
Segundo Abrão, se a mulher engravidar espontaneamente, ela tem maior risco de aborto. E, se ela não abortar, tem mais probabilidade de enfrentar problemas no terceiro trimestre da gravidez.
“Em algumas situações, congelamos os óvulos para preservar a reserva ovariana da paciente. Em seguida, realizamos a cirurgia para remover toda a inflamação pélvica e, somente depois disso, transferimos os embriões para o útero. Isso melhora o resultado da fertilização in vitro”, diz a médica do São Camilo. “Tratamos a endometriose principalmente para melhorar a qualidade de vida da pessoa.”