O sonho de se tornar um modelo de jornalista foi interrompido no último sábado (28), quando Janaína foi morta em uma das salas de pós-graduação da Universidade Federal do Piauí (UFPI), onde estudava desde 2020. A mulher de 22 anos foi estuprada e teve o pescoço quebrado durante uma calourada, festa organizada pelos alunos.
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O acontecimento fez despontar atos e vigílias em Teresina e que devem se estender a outras cidades do Brasil nesta quarta-feira (1º). Os protestos decorrentes da morte da aluna da UFPI pedem por uma implementação de segurança específica para mulheres nas instituições universitárias e buscam manter sua memória viva, pedindo por justiça. A mobilização chegou a virar slogan no Twitter pela hashtag #JustiçaPorJanaína.
Foi pelo Twitter que movimentos sociais passaram a fazer convocações para a realização de atos em todo país. Em Teresina, as manifestações foram organizadas pelo Centro Acadêmico de Comunicação Social (CACOS) da UFPI.
O principal suspeito de ter cometido o crime é o mestrando em Matemática Thiago Mayson da Silva Barbosa, que está preso preventivamente desde domingo (29). Segundo o Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), o estupro aconteceu numa sala do Programa de Pós-Graduação em Matemática, no Centro de Ciências da Natureza (CCN). No local, foram apreendidos um colchão e uma mesa com sangue, que estão sob perícia. Thiago foi visto por um inspetor carregando o corpo de Janaína, com as roupas ensanguentadas. Ele afirmou que a relação foi consensual e ela teve um mal súbito. O DHPP confirmou que o corpo de Janaína tinha marcas de estupro e agressões.
Violência de gênero nas universidades é normalizada
As violações que ceifaram a vida de Janaína não são esporádicas. Pelo contrário, englobam um cenário mais amplo de naturalização de violências contra mulheres nos espaços universitários – um padrão que é repetido em todo mundo. Além disso, denotam que a conversa sobre consentimento e a importância dele continua escassa nesses espaços. É o que diz a antropóloga social Beatriz Accioly, especializada em gênero.O estudo Violência contra a mulher no ambiente universitário, organizado pelo Instituto Avon e Data Popular em 2015, mostra de maneira contundente as consequências para mulheres dessa naturalização da violência de gênero.
Das 1.093 mulheres participantes da pesquisa, 75% afirmam ter sofrido violência sexual, psicológica, moral ou física praticada por homens no ambiente universitário. Vinte e oito por cento sofreram violências sexuais – foram estupradas, sofreram tentativas de estupro sob efeito de álcool, tocadas sem consentimento ou forçadas a beijar um aluno veterano.
Se não a morte, como no caso da Janaína, esse tipo de conduta implica em privações e angústias. Ainda segundo a pesquisa do Instituto Avon e do Data Popular, 36% das mulheres deixaram de participar de atividades acadêmicas por medo. Quarenta e dois por cento afirmaram sentir medo constante de serem alvos de violências.
Por outro lado, 27% de 820 homens não viam como abuso o contato forçado quando a mulher está alcoolizada, assim como 35% não achavam violento coagir mulheres a participarem de atos degradantes e 31% não enxergavam problema em compartilhar fotos íntimas de alunas sem a autorização delas.
Accioly, que integrou a equipe que realizou o levantamento, afirma que, desde a realização da pesquisa, as movimentações pelos direitos das mulheres e o ato de nomear atos de violência de gênero foram amplificadas. Isso se estende às violências universitárias, que ela considera como tão corriqueiras e enraizadas que, até hoje, passam despercebidas, seja no dia a dia ou em tradições como festas ou iniciações, o famoso trote.
Essa naturalização também está na culpabilização da vítima, já que, em momentos de lazer, associa-se a violência como uma consequência do uso de álcool ou outras substâncias.
“Há uma série de rituais e comportamentos que naturalizam um comportamento de violação. São ritos de sociabilidade, mais comuns nas universidades públicas, que favorecem isso. O problema não está nas festas em si, que são momentos de lazer e descontração e não devem ser vistos de forma moralista, mas na normalização de que o consentimento não é central em uma interação sexual”, define Accioly.
A antropóloga afirma ainda que esses ritos privilegiam os homens e favorecem uma determinada forma de masculinidade que vê a violência como uma validação de virilidade ou conquista perante aos seus pares. Enquanto essa masculinidade é exaltada, as mulheres são inferiorizadas e violadas.
“Essa conduta vem de um tempo em que esses espaços eram exclusivamente masculinos. Quando as mulheres começam a acessá-los, são vistas como um elemento diferente. Esses espaços não são pensados para respeitar as mulheres ou garantir sua segurança e bem-estar”, analisa.
Nesses últimos oito anos, Accioly ressalta que as universidades passaram a criar métodos para responder a esse tipo de conduta, como o Protocolo da Unicamp, em 2017; a CPI da Violência Sexual Contra Estudantes de Ensino Superior, instaurada em 2020 pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp); e o surgimento de coletivos internos formados por alunas e professoras.
Mas Accioly ressalta que não é o suficiente. Muitas vezes, a universidade se coloca em uma posição isenta diante da violência de gênero que acontece em suas dependências.
“Ao dizer que vão ‘deixar as instâncias responsáveis agirem’, não há consequência dentro da universidade”, afirma. Para a antropóloga, é necessário que existam mecanismos e protocolos internos capazes de responder de maneira contundente à violência de gênero no ambiente acadêmico.
“É um problema complexo que precisa de respostas muito aliadas a questões que dizem respeito a como a universidade reage e acolhe suas alunas. Precisa ter aparatos internos para receber essas denúncias, acompanhá-las e amparar as vítimas durante todo processo judicial, além de responsabilizar quem comete as violências. É uma série de respostas variadas que tem que ser articuladas”, conclui Accioly.
#JustiçaPorJanaína
Além de ser palco de mobilização intensa desde o último domingo, as redes sociais se tornaram um espaço de preservação de memória e de homenagens a Janaína. A estudante de jornalismo também era poetisa e mantinha um perfil nas redes sociais onde compartilhava textos de sua autoria. “Era admirável o talento e a criatividade que ela tinha para escrever poesias”, diz João sobre o talento da irmã
O último poema, publicado em 2 de janeiro deste ano, comoveu ao falar de seu futuro e teve os comentários tomados por mensagens de mulheres, amigos e familiares. “Nós vamos lutar por justiça!”, diz uma mulher. “Uma menina cheia de vida, talentosa… Que triste ler essa história. Que seja feita justiça”, afirma outra.
Caderno de Moda entrou em contato com algumas das mulheres que escreveram comentários como esses para saber se conheciam Janaína pessoalmente. As que retornaram dizem que não, mas que, ao descobrir a história, sentiram a necessidade de deixar algum tipo de mensagem para a estudante e sua família.
Uma das poucas pessoas que disseram ter a conhecido era Mateus Sousa, de 20 anos. Ele e Janaína cursaram juntos o 9º ano do Ensino Fundamental. “Ela era uma pessoa ótima. Humilde, coração bom, não tinha maldade com nada nem ninguém. Lembro que ela chegava na escola de cabeça baixa, escutando música com fone de ouvido. Quando falava com ela, abria um sorrisão”, lembra.
Outros familiares de Janaína afirmam que a menina é lembrada por sua disciplina nos estudos, além de ser uma grande sonhadora. “Estamos muito tristes com tudo o que aconteceu e como aconteceu, porém ela jamais será esquecida. Nós a amamos”, finaliza João.