Em algum momento da sua vida, a sensação de contradição já tomou conta dos seus pensamentos e das suas ações? Balizar necessidade e desejo é uma ação que dificilmente não é abalada por dúvidas, julgamentos moralistas e outras interferências da sociedade. Com esse fio condutor, o filme “Regra 34”, que tem direção de Júlia Murat, recebeu o Leopardo de Ouro, principal prêmio do Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, no dia 11 de agosto.
Além do sentimento de extase pelo prêmio em si, a equipe celebra a possibilidade de chegar com a produção em mais lugares graças aos convites de participação em outros festivais e pedidos de distribuição feitos no evento. “É muito curioso receber esse prêmio em um momento em que a cultura está sendo tão atacada, por exemplo, ficamos cinco anos sem nenhum edital de cinema no ambito federal”, questiona a diretora.
“Regra 34” é fruto do último edital disponibilizado para o cinema nacional, que aconteceu em 2017, por isso Júlia alerta para a lacuna que o audiovisual brasileiro ainda irá enfrentar. “A gente vai sentir de fato o resultado de praticamente não ter filmes sendo lançados no ano que vem por conta dessa ausência de editais. Ganhar esse prêmio é contraditório, principalmente por ser um filme que representa tanto o que governo atual tenta aniquilar, que são as minorias, o afeto, o desejo, a diferença”, afirma a diretora.
Por dentro do roteiro
Com um nome homônimo a um aviso de pornografia em conteúdos que navegam na internet, o filme costura descoberta sexual, violência doméstica e autoconhecimento a partir da história de Simone, uma bacharel em Direito. Após pagar a faculdade com o dinheiro de performances sensuais na internet, a personagem interpretada pela atriz Sol Miranda passa no concurso da Defensoria Pública, espaço onde quer combater a violência contra a mulher.
As conquistas profissionais, no entanto, não suprem, obviamente, todas as camadas da defensora pública. E, nesse momento, a amiga de infância e fotógrafa, Natalia (Isabela Mariotto), compartilha com Sol sua experiência com a técnica sexual BDSM, sigla em inglês para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo.
Nessa modalidade, com consentimento e práticas seguras, as pessoas podem se agredir com tapas, por exemplo, a fim de sentir prazer, cenário que traz questionamentos para a protagonista, especialmente por conta do seu trabalho.
Em entrevista à Caderno de Moda, Isabela aponta que a grande chave da produção é esse conflito com a moralidade. “A força do filme reside no fato de que ele se consolida a partir de paradoxos, sem necessariamente apontar caminhos ou saídas em relação aos temas abordados. Quem assistir ao filme deve sair com reflexões e sensações, e não exatamente com respostas”, diz a atriz diretamente do festival.
Para Isabela, o lançamento do filme é um ato de sobrevivência nesse cenário nacional de destruição da cultura. “Ainda é difícil acreditar que estamos estreando um filme brasileiro em Locarno. No Brasil de hoje, oportunidades como essa se tornam muito raras e por isso mesmo muito importantes. Trata-se de um trabalho que vai na contramão do conservadorismo”, defende.
Imersão ao universo do BDSM
Quando soube que havia sido aprovada para o filme, Isabela tinha um conhecimento superficial do BDSM. O laboratório permitiu que ela e os outros atores enxergassem a técnica sexual de uma forma mais segura. “Participamos de conversas e práticas conduzidas pelos mais diversos profissionais. A maior parte dos encontros foi guiada pelas especialistas Luiza Tormenta e pela Yakini Kalid. Passamos por uma espécie de imersão e foi muito bom descobrir tudo ao lado deles”, explica a atriz, que vive uma praticante de BDSM no filme.
Assista ao teaser abaixo:
A vida de Tina
Com o teatro como base da sua formação artística, a paulistana de 30 anos não imaginava que as redes sociais poderiam se tornar tão próximas do seu trabalho. Durante a pandemia, a atriz, ao lado de Júlia Burnier, criou o perfil no Instagram “A vida de Tina” (@a.vida.de.tina), fazendo uma crítica social com muita ironia e humor à classe média e alta brasileira.
“Começamos a criar os vídeos a partir do que estávamos vendo predominar nas redes sociais: pessoas postando milhares de atividades que passaram a realizar no isolamento social. Gente fazendo yoga, pão, cursos de línguas etc. Logo, nos perguntamos: ‘afinal, quem pode realmente se dar a possibilidade de fazer tudo isso?’ Os vídeos nasceram a partir desse questionamento, sempre utilizando o humor como uma forma de reflexão”, explica a atriz.
Após o sucesso do perfil, que é acompanhado por aproximadamente 200 mil seguidores, Isabela já enxerga a internet com outros olhos, “Hoje, acho muito interessante esse lugar de criação principalmente no sentido do alcance. Em cerca de segundos, conseguimos chegar a milhares de pessoas, coisa que tanto o teatro como o cinema não nos permitem”, reflete.