A marca de roupas adaptáveis Unhidden estava se preparando para fazer sua estreia na última temporada da semana de moda de Londres quando surgiram as notícias da morte da rainha Elizabeth II. A fundadora da grife Victoria Jenkins percebeu rapidamente que tinha que adiar o evento: “Eu não poderia garantir a segurança das modelos, circulando por Londres, naquele fim de semana em particular”, diz ela. O foco da mídia na cobertura do ocorrido também teria dificultado o impacto da sua estreia. “Fiquei bastante arrasada na época porque isso significava menos representação.”A Unhidden finalmente conseguiu realizar sua ambição de mostrar sua coleção durante a semana de moda. O desfile, que acontece à noite, contou com 30 modelos com deficiências ou diferenças visíveis, uma novidade na história da LFW. A fundadora Victoria Jenkins espera que isso “encoraje outros designers e mostre que há valor e beleza reais em ser inclusivo”.
Para as modelos envolvidas no desfile também é uma grande oportunidade, um momento na história com potencial de mudar a percepção de algumas pessoas sobre o que é moda e o que é desejável. Sandie Roberts, ativista, palestrante e modelo, que usa cadeira de rodas em tempo integral, acredita que esse é “o momento em que o futuro olhará para trás e dirá: ‘foi quando mudou, foi quando o mundo finalmente começou a perceber que éramos importantes’”.
No entanto, especialistas dizem que ainda há muito trabalho a se fazer para tornar a moda mais acessível aos 14,6 milhões de pessoas com deficiências físicas no Reino Unido. Mesmo com o aumento do entendimento, a falta de investimento e comprometimento continuam sendo barreiras. E, embora os momentos agitados e de conscientização nas semanas de moda sejam importantes, há uma necessidade de mudança sistêmica.
A fundadora Victoria Jenkins com a modelo Sandie Roberts, filmando nos bastidores para um episódio do The One Show da BBC, que vai ao ar na sexta-feira, 17 de fevereiro.
Victoria Jenkins, uma tecnóloga de vestuário que passou 14 anos na indústria da moda em marcas britânicas, como All Saints e Jack Wills, fundou a Unhidden em 2017 depois de perceber uma lacuna no mercado de roupas elegantes e adaptáveis. Ela ficou incapacitada por volta dos 20 anos e lutou para encontrar uma moda que atendesse às suas próprias necessidades. A Unhidden começou com pedidos sob encomenda, mas agora vende online e em lojas pop-up pelo Reino Unido. A coleção (que não segue estações definidas) tem preços entre £ 30 a £ 150 (em torno de R$ 189 e R$ 945) para peças masculinas e femininas. Depois da LFW, a Unhidden lançará uma parceria com a plataforma de aluguel Loanhood. A grife também está contará com uma linha de roupas infantis adaptáveis, a ser lançada no mercado nos próximos meses, e está em conversas com a marca de sapatos Kurt Geiger sobre uma possível colaboração de calçados adaptativos. Jenkins gostaria de vender produtos no atacado no futuro, assim que a marca estiver mais estabelecida.
Durante o desfile, a Unhidden mostrou 20 novos designs que atendem às várias necessidades da comunidade com deficiência. A coleção oferece versões de calças mostradas em pé e sentadas, levando em consideração o conforto de quem está em cadeira de rodas. A retirada do excesso de material na frente do quadril e atrás do joelho garante maior conforto e ajuda a prevenir úlceras de pressão.
Os tops também estão disponíveis nas versões em pé e sentado, com aberturas para facilitar o acesso aos braços de quem está passando por quimioterapia ou radioterapia e para quem tem diabetes. As vestimentas possuem aberturas para bolsas de ostomias ou sondas de alimentação, eliminando a necessidade de retirar a roupa para colocá-las. Os bolsos são estrategicamente posicionados para facilitar o acesso e os fechos de pressão substituem os botões, facilitando o vestir para indivíduos com diferenças de membros ou destreza reduzida.
Camisas macias também estão disponíveis para aqueles com necessidades sensoriais.
Jenkins explica que consultou médicos, pacientes e influenciadores com deficiência para garantir que os designs fossem construídos a partir de experiências reais da comunidade. Ela também analisou avaliações e comentários sobre outras marcas de roupas adaptáveis para identificar áreas de melhoria. Para o show, Jenkins escolheu uma mistura de modelos com deficiência e com diferenças visíveis, independentemente de serem modelos profissionais ou não. “Foi importante mostrar a verdadeira diversidade dentro da comunidade”, explica ela.
Muitos poucos designers e marcas usam modelos com deficiências visíveis ou mostram moda adaptável na passarela. Há algumas exceções: a Tommy Hilfiger tem uma coleção adaptável, que teve peças presentes em seus desfiles da semana de Moda de Nova York, apresentadas por modelos com deficiência. Nesta temporada em Nova York, a ativista Lily Brasch, que tem distrofia muscular, apareceu na passarela da Hitechmoda. Aaron Rose Philip, que tem paralisia cerebral, foi destaque no desfile de Collina Strada.
A Teatum Jones fez sucesso na London Fashion Week, em 2017, ao escalar modelos com deficiência para seu desfile. O objetivo era mostrar que a deficiência ou aparência física de uma pessoa não deveria limitar seu acesso a boas roupas. Como diz Rob Jones, o co-fundador da Teatum Jones: “As pessoas nos disseram, na época, que não deveríamos fazer isso e que existiam certas barreiras que tornariam impossível a inclusão de modelos com deficiências em nosso show, mas essas barreiras realmente não existiam.” Alguns sugeriram que ter modelos com deficiência exigiria o dobro da equipe para ajudar no vestir e na acessibilidade; Teatum Jones descobriu que não era esse o caso.
“Fazemos parte de uma indústria que se orgulha de ser inovadora e pioneira em mudanças e diferenças, mas na verdade não é”, diz Jones. Ele ressalta que geralmente cabe a marcas menores e emergentes ultrapassar os limites da moda, mas essas grifes carecem de recursos para causar um impacto significativo. Ele acredita que marcas mais estabelecidas precisam tomar a iniciativa e promover mudanças significativas.
Laura Winson, co-fundadora da Zebedee, a primeira agência de modelos do Reino Unido que representa exclusivamente pessoas com deficiência, concorda com a visão de Jones de que as marcas não devem se esconder atrás da desculpa de que é difícil encontrar ou acomodar talentos com deficiência. Muitos dos modelos de Zebedee têm tamanho e altura de amostra padrão, com a única diferença sendo sua deficiência. Ainda assim, conseguir que as marcas os bookem pode ser um desafio. “As pessoas sempre nos dizem que a indústria vai chegar lá, é um processo lento e vai levar tempo, mas já estamos aqui há seis anos e as marcas ainda não reservam modelos com deficiências”, diz Winson.
O shopping Bicester Collection financiou o desfile da Unhidden. Chantal Khoueiry, diretora de cultura da The Bicester Collection, diz sobre Jenkins: “Admiramos sua determinação como uma jovem empreendedora que supera os limites e aplaudimos seu compromisso em tornar acessível a moda sustentável e adaptável”.
Kurt Geiger também apoiou o show ao emprestar seu QG como um espaço acessível para cadeirantes e ao ceder sapatos adaptados para os modelos PCD. “Pessoas com deficiência são muitas vezes excluídas da esfera da moda, e é essencial que todos unamos forças para ajudar a mudar isso”, diz a diretora de criação de Kurt Geiger, Rebecca Farrar-Hockley.
O espaço do escritório de Kurt Geiger inclui salas privadas para trocas de roupas. “A privacidade é importante porque temos uma grande variedade de corpos com diferentes necessidades de vestir e a dignidade é fundamental”, diz Jenkins. Para tornar o show mais acessível, um intérprete da Língua de Sinais Britânica estará presente para a apresentação de canto ao vivo, e o show será gravado ao vivo na noite para qualquer pessoa que não possa comparecer fisicamente. “Limitamos os convidados e mantivemos o desfile bem pequeno para não sobrecarregar demais as modelos”, acrescenta ela.
Jenkins aponta que, ao ignorar PCD, as marcas de moda estão perdendo um grupo significativo de clientes em potencial: 22% das pessoas no Reino Unido vivem com alguma deficiência, de acordo com estimativas da Pesquisa de Recursos Familiares do governo do Reino Unido. “As pessoas me disseram: ‘oh, o que você faz é muito nichado’, mas não considero uma em cada cinco pessoas como sendo nicho. É muita gente!”, diz Jenkins.
Modelos Sandie Roberts, Lucy Jane e Fats Timbo nos bastidores filmando para um episódio do The One Show da BBC.
Caroline Rush, CEO do British Fashion Council, está ciente das barreiras que tradicionalmente mantêm os talentos com deficiência à margem da indústria da moda. “Existe falta de investimento, conhecimento e compromisso com a inclusão, bem como representatividade em todas as etapas do design do produto”, têm sido os maiores desafios, diz ela. Parte do problema é a falta de educação, acrescenta Jenkins: “As marcas [com] grandes equipes de design são informadas de que precisam criar moda inclusiva e não têm ideia de como fazê-lo porque não foram ensinadas”.
Jenkins acredita que a chave para superar as barreiras é envolver aqueles com experiências vividas. Caroline
Casey, fundadora do Valuable 500, um coletivo de CEOs que estão trabalhando juntos para a inclusão de pessoas com deficiência, concorda: “Muitos dos mal-entendidos e ‘erros’ poderiam ser evitados simplesmente perguntando o que precisamos ou como podemos melhorar juntos. Ao envolver a comunidade, suas ideias, seu talento e tenacidade, apoiando, desenvolvendo e investindo no design, vamos acelerar o movimento além da ótica e do tokenismo. Há uma necessidade desesperada de mudança sistêmica – não apenas de momentos inspiradores.”