Em 2019, voltei a Buenos Aires (Argentina), dessa vez numa viagem solitária, o que se constituiu em uma experiência marcante para mim. Lá fui a cinco peças teatrais, entre Hamlet e uma adaptação moderna de Ricardo III – minha preferida – visitei a livraria El Ateneo – famosa inclusive por funcionar em um antigo teatro – o que, por si, já me aguçou o espírito. Lembro de encontrar um pequeno livro prateado com o rosto de Evita Perón estampado na capa – acabei comprando a obra e a tenho até hoje. Sentei-me em uma poltrona entre os livros e ali, naquela atmosfera lúdica, por algumas horas, embarquei na leitura da história desse ícone feminino, inspiração para muitas mulheres. Imaginem a sensação: eu, sozinha, em plena Argentina, dentro da livraria-teatro, saboreando as peripécias da vida dessa atriz e política que marcou, para sempre, a vida dos nossos hermanos e, porque não dizer, influenciou o mundo!
Evita nasceu em uma humilde família portenha. Iniciou carreira como vedete, atriz de cinema e apresentadora de rádio, até conhecer um coronel em plena ascensão política, Juan Domingo Perón. Perón foi presidente da Argentina por três mandatos: entre 1946 e 1974. Evita e Péron casaram-se e se tornaram políticos lendários, tendo Evita adquirido maior importância social que seu marido.
O musical Evita, no seu formato original, é consagrado no exterior e já foi visto por mais de 60 milhões de espectadores, vencendo o Tony Award e o Olivier Award de Melhor Musical, prêmios mais importantes da Broadway e do West End.
O que parece ser a promessa da montagem brasileira Evita Open Air, encabeçada pelo diretor canadense John Stefaniuk, é sua encenação radicalmente inovadora, jovem, pulsante e diferente da linguagem usual nos musicais contemporâneos. Além da peça acontecer ao ar livre – assim como nos primórdios do teatro grego e, até hoje, nos teatros de rua, por exemplo – a extensa área de lazer do Parque Villa-Lobos proporciona algo mais, oferecendo inclusive comidas e bebidas variadas.
A atriz Myra Ruiz, que interpreta Evita no musical, e o ator e produtor Cleto Baccic, que interpreta Juan Perón, me contaram um pouco mais sobre essa experiência. Confiram a seguir:
Qual a importância de Evita para nós, brasileiros?
MYRA RUIZ: Acredito que muitos devam conhecer essa figura icônica, mas, para àqueles que não conhecem, tudo no tetro, é sobre estabelecer o diálogo. Incitar o interesse das meninas mais jovens, mas não só das meninas, de forma geral. Mas meu lado feminino vai sempre puxar para isso, pois é um interesse pessoal: falar sobre como aquela mulher navegou um mundo dominado por homens – com erros e acertos, claro. Havia um julgamento constante sobre ela. Para mim, a vontade é levantar o debate a respeito das mulheres, Evita fazia isso, e sinto ser esse o tema mais forte do nosso espetáculo. Ao tratar de questões como essas no teatro, permite-se ao público educar-se e criar o interesse em pesquisar cada vez mais. É importante as meninas assistirem.
CLETO BACCIC: Sem dúvida, Evita foi imprescindível para que, hoje, a gente olhe para a posição da mulher de forma crítica. É importante também apontarmos para o quanto isso mudou, e se, de fato, houve alguma mudança. Falando propriamente do Ocidente, mesmo sabendo que mulheres tem direitos, sabemos que ainda não há uma igualdade, por exemplo, salarial. “Atrás de todo homem há sempre uma grande mulher”. Nós, meninas, já ouvimos essa frase diversas vezes. No caso de Evita e Perón, fica evidente que não é bem assim. O que acham disso?
MR: É engraçado pois essa frase, em tese, é para ser um elogio às mulheres. Mas algo assim não é mais um elogio, talvez tenha sido em outra época, mas, hoje, quero ser uma grande mulher e ponto, sem estar atrás de ninguém. Evita ressignificou o que é ser esposa, por exemplo, de um presidente. Hoje podemos inclusive falar de mulheres que são presidentes. Naquela época não havia essa possibilidade.
CB: Querendo ou não, minha geração foi criada de forma muito machista… Vocês, meninas, me ensinam. De fato… essa frase coloca a mulher como se ela nunca tivesse que vir a frente.
MR: Mas o louco é que, no caso da Eva, era um pouco isso mesmo, era o que tinha para o momento… Ela foi isso para o Perón. O legal que o Baccic faz, é trazer para o Perón uma vulnerabilidade que não sei se ele tinha, de fato, à época. Homens tem medo, e Baccic revela isso na sua interpretação.
CB: De minha parte quero dizer que sou completamente apaixonado pela Myra. Sempre penso que estou diante de uma grande atriz, que nem trinta anos tem. Defendemos muito, juntos, o casal Evita e Perón, sem pré-julgamentos.
Quais os maiores desafios ao interpretar essas grandes figuras históricas?
MR: A gente não teve a pressão de fazer uma imitação deles, o que acho uma coisa muito legal da nossa montagem. Claro que queremos retratar aquilo que Evita significava, do jeito que ela era, uma mulher hiper carismática, que conquistou o mundo. Falavam que ela fervia, que ficava toda vermelha quando falava, ela tinha essa força, esse fogo. O desafio para mim é esse, sempre tentar estar com essa energia lá em cima, para fazer jus a quem foi Evita. Tentar conquistar o público, com essa história, da mesma forma que Evita conquistou na época. Além, claro, da parte técnica, das dificuldades inerentes – a todos nós – de se fazer musical. As notas são sempre “tortas”, agudas, ou muito graves. Tem dança, cenas supercomplexas. Mas estamos tentando defender os personagens da melhor forma.
Como está sendo a experiência de encenar ao ar livre?
CB: O mais legal, para mim, são, justamente, os imprevistos. É usar, a favor do espetáculo, o que está acontecendo naquele momento. Tudo compõe para quem está assistindo. Há dificuldades, mas é um prazer gigantesco estar naquele palco, todo aberto. À tarde, saímos do palco vermelhos, se não passamos protetor. Já, à noite, a gente gela… é uma delícia.
MR: Estamos fazendo justamente isso, tentando que os elementos externos componham a peça, e não lutar contra eles. Essa é a graça da experiência. É diferente de tudo que já fizemos.
CB: A ideia é realmente criar uma experiência imersiva. Enquanto produtor, também fico atento à funcionalidade dessa estrutura, o que funciona e o que precisamos aprimorar. Como fazer para que o público tenha uma experiência melhor com a gente? A experiência ao ar livre é milenar, mas nova para a gente.
Myra, como foi o processo para conseguir o papel?
MR: Foi muito suado. Como qualquer grande conquista, pelo menos na minha vida, nenhuma veio fácil. Já tive convites para fazer musicais, mas, coincidências ou não, as grandes conquistas foram sempre difíceis. Para o Evita, foram muitas fases de testes, muitos desafios, muito estresse. Depois de termos sido escalados para os papéis, todo o elenco precisou esperar um mês pela aprovação estrangeira.
CB: Durante as audições da Myra, eu batia o olho e me encantava. Nossa preocupação era: “Que atriz vai corresponder a essa nossa expectativa?”. Foi uma grata surpresa receber Myra nas audições. Ela trouxe esse fogo, ela é Evita.
Há uma distância entre o teatro musical e outros formatos teatrais?
CB: Nunca gostei dessa dissociação. Para dar um exemplo, esses dias fui ao banco. A atendente viu na minha ficha que era ator e perguntou: “Você é ator? O que você já fez? De onde te conheço?”. Virei para ela e disse: “Você não me conhece, eu sou ator.”. Você ou precisa ser ator de televisão, ou de teatro, de teatro musical, ou não. Há uma constante busca por essa segmentação. Claro que existem diferenças, diferentes habilidades. Não é toda atriz que consegue fazer o que a Myra faz? Não, não é. E tudo bem. Por que que ela tem isso? Claro, há o talento natural, mas ela estudou mais para aquilo. Ao passo que o teatro físico, butô, por exemplo, é outra coisa. Qual a linguagem artística que dialoga com você? Com suas competências e ambições? Isso que deve ser discutido. Não se um determinado tipo de teatro é melhor ou pior, todos viemos do teatro grego, nos expressamos da maneira que nos cabe. Tudo isso, todos esses rótulos me incomodam um pouco. Sou simplesmente um ator.
MR: Isso também tem se manifestado de uma forma muito forte para mim. Sou atriz, ponto. Existe um preconceito velado entre as diferentes áreas do teatro. Não é descolado fazer musical? É cafona? Não tem bons atores? É só entretenimento? Não é arte? Esse preconceito existe e só enfraquece o teatro como um todo. Já ouvi de um agente que eu teria que parar de fazer musical para ser uma atriz respeitada. Tenho muito orgulho de fazer musical. E, será que aqueles que tem esse preconceito, de fato, conhecem a história do teatro musical? Você pode até não gostar, mas é importante ter o conhecimento. Luto muito para isso.
Serviço
Parque Villa-Lobos – Entrada pelo portão Cândido Portinari
Av. Queiroz Filho, 1365 – Alto de Pinheiros, São Paulo – SP
Sessões:
Quinta-feira, às 20h00
Sexta-feira às 20h00
Sábado, às 15h00 e às 19h30
Domingo, às 15h00 e às 19h30
Ingressos: De R$50,00 a R$300,00. À venda pelo bit.ly/ingressosevita